A LEI DAS ÁGUAS DO RS: NO CAMINHO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL?

Eugenio Miguel Cánepa

- Economista

- Pesquisador da Fundação de Ciência e Tecnologia – CIENTEC

- Representante da Secretaria de C&T no Comitê Taquari-Antas

Luiz Antônio Timm Grassi

- Engenheiro Civil

- Consultor

- Presidente do Comitê de Gerenciamento do Lago

Guaíba

 

Janeiro/2001

 

A LEI DAS ÁGUAS DO RS: NO CAMINHO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL?

 

Resumo

O presente artigo visa a uma discussão da relação entre a Lei estadual 10.350/94 (a assim chamada Lei das águas gaúcha) e as prescrições derivadas do conceito de desenvolvimento sustentável. O texto inicia com uma fundamentação do Princípio Usuário Pagador (PUP), o pilar básico da Lei 10.350/94, bem como do seu caráter inovador na política ambiental brasileira, na medida em que introduz instrumento econômico de indução, em complementação à velha política de mandato-e-controle. A seguir, descreve-se, nos seus diversos componentes e inter-relações, o sistema descentralizado e participativo que deverá implementar a aplicação do PUP. Finalmente, discute-se a relevância do sistema proposto sob a ótica do conceito de desenvolvimento sustentável nas suas principais correntes (a da substituição e a da manutenção do capital natural).

O PRINCÍPIO USUÁRIO PAGADOR

Os fundamentos do Princípio Usuário Pagador (PUP)

Quando se começa a falar em cobrança pelo uso da água, costuma-se ouvir, imediatamente, a seguinte objeção: "Cobrança pelo uso da água? Mas, como? Já não pagamos - e bastante - por ela?" A resposta a essa objeção levar-nos-á à conceituação dos quatro preços da água.

Numa grande cidade brasileira típica - Porto Alegre, por exemplo - um consumidor urbano paga dois preços pela água potável que consome: 1) o preço correspondente à captação, potabilização e distribuição da água tratada, e 2) o preço correspondente ao esgotamento sanitário, i. é, o transporte da água residuária de volta ao curso d'água. Nesse esquema, o rio - quer como fonte do recurso, quer como fossa do resíduo - é de livre acesso, gratuito. Nos primórdios do desenvolvimento e da urbanização, com baixa renda per capita e baixa densidade populacional, esses dois preços cobrados pela água são perfeitamente funcionais, cobrindo os custos que a sociedade tem na provisão do serviço de abastecimento e esgotamento sanitário. A gratuidade do rio é possível, pois sendo ele abundante relativamente às necessidades, todos os demais usos (tomar banho, pescar, navegar, etc.) são viáveis, não sofrendo interferência do uso urbano - a capacidade de suporte e de assimilação do rio são suficientes para todos os usos, a preço zero. Entretanto, à medida que o desenvolvimento econômico se processa, a crescente renda per capita, bem como o crescimento populacional da cidade, fazem com que, num estágio inicial, o despejo de esgotos cloacais de volta ao rio, ao exceder a capacidade de autodepuração do mesmo, provoque uma degradação de qualidade do rio de tal ordem que desapareça a balneabilidade e a pesca, e o próprio abastecimento de água potável seja encarecido, via aumentos de custos de tratamento. Num estágio mais avançado, se a retirada de água for excessiva em relação à capacidade de suporte, problemas quantitativos também podem ocorrer. Seja como for, o fato é que o rio se tornou escasso, a totalidade dos usos, com livre acesso e a preço zero, não é mais possível.

É nesta situação que a sociedade pode decidir pela intervenção do Poder Público - no limite, estabelecendo a propriedade estatal do recurso, que passa a não ser mais de livre acesso - no sentido de racionar e racionalizar os usos. Aqui, por sua vez, surge o PUP como instrumento desse racionamento e racionalização, implicando mais dois preços para a água: 3) um preço correspondente à retirada, que será acrescido à conta de água tratada, no sentido de frear o consumo, viabilizando inclusive o investimento em dispositivos poupadores de água; e 4) um preço correspondente ao despejo de esgotos no rio (o velho Princípio Poluidor Pagador - PPP), e que acompanhará a tarifa de esgoto, no sentido, também, de refrear o seu lançamento (se a tarifa, por unidade despejo, for suficientemente alta, custará menos ao munícipe tratar ponderável parcela do esgoto e pagar pela poluição residual, do que pagar pelo despejo total do esgoto gerado). Os preços 3) e 4) integram o chamado Princípio Usuário Pagador (PUP) e constituem um instrumento crescentemente utilizado no sentido de viabilizar os diversos uso de um curso d'água que se tornou escasso.

Como todos sabem, os habitantes da cidade não são os únicos usuários da água, potável ou não. Existe uma demanda industrial, uma demanda por agricultores, etc. Deixamos a cargo do leitor a extensão desta análise dos preços adicionais (os preços das "pontas") para estes casos.

A aplicação do PUP: uma tendência mundial

Existe hoje uma tendência mundial - ou, ao menos, nos países mais avançados em questões de política ambiental - de publicização das águas e de uso, por parte do Estado, de mecanismos econômicos de indução dos agentes no sentido de um uso mais racional das águas, quer no que tange à quantidade, quer no que tange à qualidade. Na verdade, existe nesses países uma tendência a sair, gradativamente, das velhas políticas de mandato-e-controle (command and control policies) - baseadas na imposição, por parte do Estado, de padrões de emissão, bem como da melhor tecnologia de controle disponível, sempre end-of-pipe - para políticas que, mediante o uso de instrumentos econômicos de incentivo, procurem atingir, ao custo mínimo para a sociedade, padrões de qualidade ambiental politicamente negociados e estabelecidos. {O leitor que quiser obter informações mais detalhadas, por exemplo para o caso da Europa, deve consultar: Barraqué, B,: As Políticas dá Água na Europa. Lisboa, Inst. Piaget, 1998}.

O Brasil vem se alinhando a esta tendência mundial, na medida em que, a partir do estabelecimento da propriedade estatal dos recursos hídricos na Constituição Federal de 1988, bem como da instituição de diversos sistemas de gestão de recursos hídricos pelas Constituições estaduais subseqüentes, o PUP passou a ter um papel de destaque no leque de instrumentos de gestão. Assim, temos hoje um razoável conjunto de leis que incorporam esse instrumento: Lei estadual 7.763/91, de São Paulo, Lei estadual 10.350/94, do Rio Grande do Sul, Lei federal 9.433/97, entre outras.

Como se recordará. A Constituição Federal (1.988) estabeleceu a propriedade estatal das águas nos seus artigos 20,III e 26,I:

Art. 20. São bens da União:

........................................................................................................................................................

III - os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais;

Art. 26. Incluem-se entre os bens dos Estados:

I - as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União;

Como se pode ver, estes dispositivos constitucionais estabelecem uma esfera federal de domínio das águas (rios de fronteira e rios que atravessam vários estados) e estaduais (rios internos e águas subterrâneas).

No que diz respeito ao Rio Grande do Sul, a Constituição estadual (1.989) estabeleceu, para as águas do seu domínio, o seguinte (art. 171):

Art. 171 - Fica instituído o sistema estadual de recursos hídricos, integrado ao sistema nacional de gerenciamento desses recursos, adotando as bacias hidrográficas como unidades básicas de planejamento e gestão, observados os aspectos de uso e ocupação do solo, com vista a promover:

I - a melhoria de qualidade dos recursos hídricos do Estado;

II - o regular abastecimento de água às populações urbanas e rurais, às indústrias e aos estabelecimentos agrícolas.

# 1o - O sistema de que trata este artigo compreende critérios de outorga de uso, o respectivo acompanhamento, fiscalização e tarifação, de modo a proteger e controlar as águas superficiais e subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, assim como racionalizar e compatibilizar os usos, inclusive quanto à construção de reservatórios, barragens e usinas hidrelétricas.

# 2o - No aproveitamento das águas superficiais e subterrâneas será considerado de absoluta prioridade o abastecimento das populações.

# 3o - Os recursos arrecadados pela utilização da água deverão ser destinados a obras e à gestão dos recursos hídricos na própria bacia, garantindo sua conservação e a dos recursos ambientais, com prioridade para as ações preventivas.

Este dispositivo corporificou 4 grandes princípios para a gestão das águas estaduais:

1º) Gestão das águas através de um Sistema Estadual de Recursos Hídricos ( e não através de um órgão específico e centralizado);

2º) Adoção da bacia hidrográfica como unidade básica de planejamento e intervenção;

3º) Estabelecimento da outorga e tarifação dos recursos hídricos (cobrança pela retirada e pelo despejo de efluentes;

4o) Reversão, para a respectiva bacia de arrecadação, da receita acima, devendo os recursos financeiros ser aplicados na própria gestão das águas da bacia.

Estes dois últimos princípios exigem, pelo seu caráter verdadeiramente revolucionário, no Brasil, um comentário especial. De fato, de um lado, o princípio 3º estabelece a aplicação, pioneira, do Princípio Usuário Pagador – PUP – ou seja, a cobrança pela utilização do recurso hídrico. De outro, pelo 4º princípio, o PUP é aplicado de maneira ¨casada¨: o produto de sua arrecadação fica na bacia para a sua gestão (financiamento do planejamento e intervenções, seja estruturais ou não).

Pagamento pelo uso da água: tributo ou preço?

No RS, dada a definição constitucional (estadual) da cobrança pelo uso da água como "tarifa", não parece haver dúvida quanto ao enquadramento do PUP como preço público. Porém, ao nível federal e de outros estados, bem como nas discussões correntes entre pessoas interessadas, freqüentemente ocorre uma discussão sobre o fato de o pagamento pelo uso da água ser tributo (fala-se numa "taxa") ou preço. Parece-nos conveniente, pois, fazer uma pequena digressão sobre o assunto, a título de esclarecimento.

Sob nosso ponto de vista, o PUP dá origem a um preço. De fato, não estamos diante de um tributo (imposto, taxa ou contribuição de melhoria), destinado a financiar serviços públicos. Estamos, isto sim, diante de um preço – um preço público, mais precisamente – destinado a remunerar o Estado pelo uso de um patrimônio de propriedade estatal que se tornou escasso relativamente às necessidades (um rio ou um aqüífero, no caso) e para o qual não cabe mais o "livre acesso", sob pena de degradação do recurso. Trata-se, pois, de um verdadeiro "arrendamento" dos serviços de um patrimônio público, em tudo e por tudo semelhante ao "ticket azul" de nossos centros das grandes cidades. Nestes, como quase todos nós sabemos por experiência própria, vagas de estacionamento em pontos centrais são alugadas por tempo determinado (outorga) e por um preço também determinado (tarifação). (À noite, é claro, quando as vagas são abundantes em relação à demanda, o estacionamento não é cobrado, as vagas são de "livre acesso", como deve ser).

UM SISTEMA DE GESTÃO DAS ÁGUAS DESCENTRALIZADO E PARTICIPATIVO: A LEI 10.350/94

Características gerais da Lei 10.350/94

Tendo por base os dispositivos constitucionais federal (art. 26,I) e o estadual (art. 171), a Lei 10.350/94 (a chamada Lei das Águas gaúcha) incorpora os mais modernos princípios de gestão dos recursos hídricos, os quais associam conceitos técnicos a uma visão de políticas públicas:

¨ A adoção da bacia hidrográfica como unidade de planejamento e gestão, o que tem como corolário a consideração - no âmbito geográfico da bacia - dos usos e da conservação de bens ambientais correlatos, como o solo, a fauna e os recursos minerais, assim como os fatores antrópicos;

¨ A outorga, por parte do Estado, do direito de uso da água. Por essa medida, o Estado exerce o efetivo domínio das águas previsto já na Constituição Federal, reconhecendo-as como bem de propriedade estatal;

¨ A tarifação pelo uso das águas. É o reconhecimento da água como bem econômico, através da aplicação do princípio usuário-pagador. A cobrança de uma tarifa é um mecanismo de racionamento, racionalização e controle, além de gerar recursos financeiros para investimento na conservação do bem;

¨ A reversão dos recursos financeiros para a própria bacia onde foram gerados, como aperfeiçoamento gerencial que garante a eficácia do sistema e o controle por parte dos usuários e comunidade;

¨ A inclusão, como objeto de gestão, das águas superficiais e subterrâneas, em diferentes fases do ciclo hidrológico, reconhecendo a unidade do mesmo e suas características dinâmicas;

¨ - A racionalização e a compatibilização de diferentes usos das águas, enfatizando a melhoria da qualidade e a priorização do abastecimento das populações. Este princípio reforça a justificativa de uma gestão sistêmica dos recursos hídricos, interinstitucional e multidisciplinar.

Histórico

A promulgação da Constituição Estadual em 1989, com seu artigo 171, deu grande ímpeto ao grupo de técnicos, tanto do Estado quanto da iniciativa privada, que se haviam engajado nas experiências pioneiras dos Comitês Sinos e Gravataí e no estudo teórico-comparado da experiência internacional em gestão de recursos hídricos. A partir daí foi possível consolidar a recém reconstituída Comissão Consultiva do Conselho de Recursos Hídricos - CRH-RS - que congrega cerca de quarenta órgãos e entidades, e pensar organizadamente e em profundidade na regulamentação do artigo 171.

No início do ano de 1991, inclusive, um dos componentes da Comissão Consultiva , com o patrocínio da CIENTEC e da FAPERGS, estagiou durante dois meses na França, estudando seus comitês e agências de bacia. Em outubro de 1991, finalmente, por iniciativa do então Presidente do CONRHIRGS, foi formado um GT para elaborar anteprojeto de lei regulamentando o Art. 171. Em meados de 1992 o anteprojeto estava pronto e começou a ser discutido em duas frentes:

- entre as diversas instâncias do poder público estadual, recebendo sugestões;

- com diversos segmentos da sociedade (representantes do setor industrial e orizícola, alguns sindicatos, comitês Sinos e Gravataí, etc.).

A tramitação em nível governamental foi lenta e o anteprojeto, praticamente sem alterações, foi encaminhado à Assembléia Legislativa em agosto de 1994. Nesta, tramitou por menos de meio ano e, em dezembro, foi aprovado, também sem alterações. Finalmente, em 30/12/94, foi sancionado pelo Governador do Estado, como Lei 10.350.

A Lei 10.350/94: Missão e Estrutura

Em seu Capítulo I, a Lei 10.350/94 dispõe sobre a Política Estadual de Recursos Hídricos (PERH). Do exame do capítulo transparecem duas características marcantes da lei:

- Em primeiro lugar, recupera-se para o poder público e a sociedade gaúcha a idéia e a necessidade de um planejamento a longo prazo, sem o qual o bem ambiental água -- de propriedade estatal -- pode ser exaurido, principalmente por degradação qualitativa de suas fontes.

- Em segundo lugar, traduz-se essa idéia de planejamento num esquema descentralizado e participativo, onde as comunidades afetadas tem voz e voto, sem os quais o planejamento tornar-se-ia, dada a sua complexidade, excessivamente tecnocrático e, provavelmente, fadado ao fracasso.

No Capítulo II é definida a estrutura, i. é, são apresentados os elementos integrantes do Sistema Estadual de Recursos Hídricos (SERH). Há, aqui, três níveis a considerar:

1) No topo, temos as instituições orientadoras do sistema: Conselho de Recursos Hídricos, Assembléia Legislativa, FEPAM e Departamento de Recursos Hídricos. Cabe a estas instituições estabelecer rumos, acolher propostas, consolidá-las e aprová-las, bem como monitorar resultados, dando ciência aos cidadãos, periodicamente, do andamento do sistema. Mais especificamente, temos as seguintes atribuições, por órgão:

Conselho de Recursos Hídricos (CRH-RS): elaborar ou opinar sobre propostas de alteração da Política Estadual de Recursos Hídricos; apreciar e acompanhar o Plano Estadual de Recursos Hídricos; aprovar os Relatórios Anuais sobre o Estado dos Recursos Hídricos, critérios de outorga e os regimentos dos Comitês de Bacia; dirimir, em última instância, conflitos sobre os usos das águas; representar o Governo na área.

Departamento de Recursos Hídricos(DRH): elaborar o anteprojeto de lei do Plano Estadual de Recursos Hídricos; coordenar e acompanhar a execução deste; exercer o poder de outorga quantitativo; propor alterações nos critérios de outorga; elaborar o Relatório Anual sobre o Estado dos Recursos Hídricos e assistir tecnicamente o Conselho de Recursos Hídricos.

Fundação Estadual de Proteção Ambiental (FEPAM): como órgão ambiental do Estado, integra o Sistema na qualidade de responsável pela outorga qualitativa dos recursos hídricos; é responsável, também, pelo monitoramento da qualidade dos corpos receptores; auxilia na elaboração das propostas de planos de bacias hidrográficas, na do Plano Estadual de Recursos Hídricos e na dos planos definitivos de bacias hidrográficas.

Assembléia Legislativa(AL): transforma em Lei o Plano Estadual de Recursos Hídricos (refeito a cada quatro anos, com horizonte de doze) e fixa os níveis mínimos de tarifação pelo uso dos recursos hídricos.

2) Na base, temos os Comitês de Gerenciamento de Bacia Hidrográfica(CGBH), verdadeiros "parlamentos das águas", nos quais se estabelece o ritmo das intervenções necessárias à conservação e desenvolvimento dos recursos hídricos, compatibilizando as metas e possibilidades de crescimento com os custos da preservação ambiental. Seu trabalho compreende a sugestão de padrões de qualidade a atingir nos corpos d'água da bacia, bem como o estabelecimento do preço da água, em seus diversos usos, para financiar as intervenções necessárias. Para exercer sua função, os Comitês de Bacia serão constituídos por representantes dos usuários da água na bacia (40%), representantes da população da bacia (40%) e representantes de órgãos públicos da administração direta estadual e federal ligados aos recursos hídricos (20%).

3) Como elo de ligação entre esses dois níveis, colocam-se as Agências de Região Hidrográfica (ARH), órgãos técnicos a serviço do sistema, em geral, e dos Comitês de Bacia, em particular, a fim de que estes possam decidir sobre as intervenções e os preços da água com base em alternativas tecnicamente factíveis e bem delineadas.

A Lei 10.350/94: Fluxograma de funcionamento

Uma vez estabelecida a missão (Capítulo I) e a estrutura do sistema (Capítulo II), os Capítulos III e IV tratam da dinâmica do sistema. O fluxograma da página seguinte pretende resumir essa dinâmica.

Duas idéias-chave transparecem, desde logo, na "moldura", digamos assim, do fluxograma.

a) a primeira coluna destaca aquilo que é o pilar do sistema: o processo de planejamento, e cuja importância já destacamos. Podemos ver, examinando as diversas etapas, que o processo de planejamento se desenvolve desde as primeiras propostas de enquadramento dos cursos d'água e dos planos preliminares de bacia hidrográfica até o planos definitivos de bacia hidrográfica e o controle do desempenho, por parte do Estao..

b) a primeira linha destaca os principais atores, refletindo, pelo seu simples número, a grande complexidade do processo e, conseqüentemente, o seu caráter sistêmico. De fato, os múltiplos usos das águas, bem como a dispersão geográfica destas, não permitem a utilização de uma estrutura simples para lidar com a questão; procederam corretamente, portanto, os constituintes estaduais ao postular, através do art. 171, um "sistema" para a gestão dos recursos hídricos estaduais; mais adiante, falaremos sobre os custos e benefícios deste sistema complexo.

 

Com base nestas coordenadas gerais, podemos passar, agora, para uma descrição sucinta de todo o processo:

- Cada CGBH, com o auxílio da ARH correspondente, prepara Proposta de Enquadramento (objetivos de qualidade dos cursos d'água), cabendo à FEPAM a palavra final sobre o mencionado enquadramento (pelas atribuições da Lei Federal 6938/81 e da Resolução 20/86 do Conselho Nacional do Meio Ambiente - CONAMA).

- Estabelecido o enquadramento, que se pretende durável, cada CGBH, também com a assistência de sua ARH, elabora Proposta de Plano de Bacia Hidrográfica, onde se prevêem as intervenções necessárias para a consecução dos objetivos de qualidade acordados no enquadramento.

- O DRH, com o auxílio das ARHs, consolida todas as Propostas oriundas dos CGBHs e elabora a Proposta de Lei do Plano Estadual de Recursos Hídricos (PERH), encaminhada pelo Executivo Estadual à Assembléia Legislativa (AL), após aprovação pelo CRH. ( Nos termos da Lei 10.350/94, o PERH é refeito a cada 4 anos, com horizonte de 12). Uma vez aprovado o PERH pela AL, transformado em Lei, suas disposições passam a ser vinculantes para todos os CGBHs.

- Cada CGBH, com o auxílio de sua respectiva ARH, procede ao ajuste "fino" de sua Proposta de Plano, estabelecendo o Plano de Bacia Hidrográfica (definitivo). São detalhados intervenções, cronogramas e custos, bem como os valores a serem cobrados pelo uso das águas, necessários para o financiamento dessas intervenções

- Cada ARH, na sua respectiva região, arrecada e canaliza os recursos financeiros acordados, respeitando o princípio de que aquilo que é arrecadado em cada bacia deve ser reaplicado na mesma (contas vinculadas).

- Concomitantemente com o estabelecimento e a execução do PERH e dos PBHs, o DRH e a FEPAM procedem à outorga qualiquantitativa dos usos dos recursos hídricos.

- Intervenções que digam respeito a um subconjunto da população da bacia (p. ex., um distrito de irrigação) terão que passar pelo crivo e aprovação do CGBH, embora os custos dessa intervenção sejam rateados apenas entre os participantes.

- Cabe ao Poder Público estadual, através da FEPAM e do DRH, auxiliados pelas ARHs, o monitoramento da qualidade dos corpos de água e das fontes emissoras de resíduos, bem como da disponibilidade quantitativa da água.

- O DRH, com auxílio da FEPAM e das ARHs, e ouvidos os CGBHs, elabora o Relatório Anual sobre o Estado dos Recursos Hídricos (RARH). o qual é aprovado pelo CRH-RS e dado à publicidade.

Os dois últimos capítulos da Lei abordam as Infrações e Penalidades e as Disposições Finais e Transitórias.

Características salientes da Lei 10.350/94

Para finalizar, vamos comentar dois aspectos interrelacionados da Lei 10.350/94, que resultam do caráter altamente inovador do art. 171 da Constituição Estadual de 1989.

Primeiramente, assinalemos que a Lei 10.350/94 está entre as pioneiras no Brasil no que tange à utilização de instrumentos econômicos para a execução da política ambiental. Com isto é possível alinhar-se a boa parte dos países desenvolvidos e superar a velha política de mandato-e-controle, calcada quase exclusivamente na fixação de padrões de emissão, hoje comprovadamente ineficiente, quando não ineficaz.

Com o uso de instrumentos econômicos -- tal como a tarifação, estabelecida pela Lei 10.350/94, com base no art. 171 -- é possível começar a trabalhar

- com padrões de qualidade, estabelecidos pela sociedade e transformados em objetivos de política ambiental,

- na busca de alternativas com custos socialmente aceitáveis na consecução desses objetivos.

Além do mais, é possível, também, gerar os recursos financeiros para a execução das intervenções necessárias à conservação e melhoria do bem ambiental.

Em segundo lugar, é de se ressaltar a questão da participação da comunidade em todas as etapas do processo de planejamento e intervenção na esfera dos recursos hídricos.

De fato, uma das características distintivas da Lei 10.350/94, e que a aproxima muito do sistema francês de gerenciamento das águas, é que as comunidades afetadas -- através dos CGBH -- realmente vão ter um peso muito forte na decisão dos objetivos de qualidade e vão decidir -- mediante a fixação do preço da água -- o ritmo de progresso na consecução desses objetivos, compatibilizando-o com os demais aspectos de desenvolvimento de suas respectivas bacias.

Nunca é demais ressaltar a importância deste dispositivo, na medida em que a cobrança pelo uso da água é um novo encargo para os cidadãos, mas que os próprios cidadãos afetados decidirão; e isto é fundamental, principalmente numa época em que a intervenção do Estado é tão fortemente contestada. Este argumento, em nosso entender, é que sustenta a complexidade do sistema -- tão criticada por muitos -- e que faz com que valha a pena tentar um esquema não tecnocrático de gerenciamento dos recursos hídricos no RS.

A experiência internacional, especialmente da França e da Alemanha, evidencia que tal esquema é viável. O mapa da página seguinte mostra o estágio atual de instalação e funcionamento dos CGBHs previstos pela Lei 10.350/94.

O modelo francês de gestão das águas como inspiração ao modelo gaúcho

Embora o PUP seja atualmente de aplicação bastante generalizada, as formas de aplicação são muito variadas, especialmente no que tange ao seu grau de centralizaçã/descentralização e ao destino dado à arrecadação de recursos via PUP. O modelo francês, que inspirou a lei gaúcha, ilustra o caso "descentralizado"e no qual os fundos arrecadados pela cobrança retornam ao sistema para o financiamento das intervenções na respectiva bacia. O esquema geral é o seguinte:

i) Parte-se de um conjunto de objetivos de longo prazo a atingir, corporificado em padrões de qualidade dos recursos hídricos da bacia e que refletem os usos desejados pela comunidade; Esta é a fase do chamado "enquadramento" dos corpos d’água;

ii) Tendo esse conjunto de objetivos como pano de fundo, o comitê de bacia, com base em estudos técnico-econômicos feitos pela respectiva agência, decide as metas de abatimento a serem cumpridas e as intervenções a serem realizadas num horizonte de vários anos (5, 6 ou mesmo 7). Esse plano, evidentemente, resultará do cotejo entre as tarifas necessárias para induzir determinados níveis de abatimento e de intervenções "versus" os recursos financeiros da comunidade, seu nível de desenvolvimento e preocupação ambiental, suas correlação de forças políticas, etc.;

iii) Calculada a tarifa necessária e suficiente para, via curva de custo marginal de controle, atingir as metas de abatimento acordadas (preço 4), o total arrecadado dos agentes que pagam (pois têm um custo marginal superior à tarifa) vai para um fundo destinado a financiar os investimentos daqueles que, por terem um custo marginal inferior à tarifa, são induzidos ao abatimento. Estes recursos são a estes repassados sob várias modalidades, que vão desde financiamentos a fundo perdido (subsídio) até empréstimos a taxa de juros de mercado, tudo dependendo do que foi deliberado no comitê, a partir das alternativas apresentadas pela agência. É de se observar, também, que, no caso de haver empréstimos, o total arrecadado pela agência num determinado ano não provém somente da tarifa sobre os pagadores desse ano, mas também do retorno dos empréstimos (capital e juros) feitos nos anos anteriores. Ainda assim, o total arrecadado num determinado ano pode não coincidir com o total dos investimentos relativos às intervenções induzidas naquele ano pelo nível da tarifa; assim sendo, evidentemente, os "tratadores" deverão complementar os recursos com captação própria. O importante a reter, entretanto, é que se a tarifa for adequadamente calculada,

 

aqueles que têm custo marginal de tratamento inferior à tarifa, serão induzidos também à busca desses recursos complementares;

iv) O preço 3 (preço pela retirada de água) também é calculado tendo em vista as intervenções planejadas (p. ex., barragens de regularização de vazão) e a economia no consumo de água que se pretende induzir nos consumidores;

v) Finalmente, cabe ao Estado, proprietário do recurso hídrico e seu gestor em nome da sociedade, monitorar as fontes poluidoras e os níveis de qualidade dos mananciais, tudo no sentido de verificar se a aproximação aos objetivos de longo prazo está sendo efetivada, ano após ano, e se a sua velocidade é a adequada.

Modelo francês x modelo gaúcho: semelhanças e diferenças

Dentro do sistema francês, o território foi dividido em seis (grandes) bacias hidrográficas e, em cada uma, foram estabelecidos objetivos de qualidade a serem atingidos (o chamado enquadramento das águas). A partir daí, cabe aos Comitês de Bacia (um para cada bacia), constituídos por representantes de diversos segmentos da sociedade, especialmente usuários da água, estabelecer planos de melhoria quantitativa e qualitativa que permitam ir gradativamente se aproximando dos objetivos de qualidade estabelecidos. Cabe às Agências de Bacia (uma para cada Comitê) dar assistência técnica aos Comitês, que passam a ser verdadeiros ¨parlamentos das águas¨, estabelecendo os níveis do PUP e suas formas de aplicação no financiamento das intervenções planejadas. Resultou daí um sistema de gestão descentralizado e participativo, que tem sido considerado exemplar no mundo inteiro.

Assim, não é de admirar que o exemplo francês tenha sido forte inspirador da Lei estadual 10.350/94, que regulamenta o art. 171 da Constituição gaúcha, dado que, justamente, o 3º e 4º princípio estabelecidos no art. 171, por assim dizer, induzem à adoção do sistema francês ou semelhante.

Entretanto, e como não poderia deixar de ser, a Lei gaúcha não é uma cópia da lei francesa, havendo, sob o ponto de vista institucional, quatro diferenças que devem ser desde logo destacadas:

1o) Embora o território gaúcho tenha sido dividido em três regiões hidrográficas (à semelhança das "bacias" francesas), temos em cada região seis ou sete comitês de bacia; isto implica, evidentemente, um grau maior de descentralização;

2º) Por questões de economias de escala, não haverá uma Agência de Bacia para cada Comitê, prevendo-se, apenas, três Agências (uma para cada região hidrográfica);

3º) A forma de escolha dos representantes, nos Comitês, dos diversos segmentos da sociedade, segue, no RS, linhas bem diferentes das do sistema francês. No sistema francês, o modo de representação é do tipo "de cima para baixo": o Estado, como gestor das águas, estabeleceu a composição dos comitês, bem como os "colégios eleitorais" a partir dos quais os representantes deveriam ser escolhidos. Na experiência que está sendo implementada no Rio Grande do Sul, o esquema pode ser caracterizado como sendo "de baixo para cima": a partir de lideranças interessadas na implantação da Lei das Águas, a sociedade de cada bacia é mobilizada no sentido de discutir e escolher um modelo de composição, bem como votar os representantes de cada segmento sugerido; cabe ao Estado sancionar (ou não, ou modificar) a composição e os representantes sugeridos.

4º) O enquadramento das águas, no caso gaúcho, não é feito diretamente pela comunidade, como foi o caso da França. No nosso caso, em virtude de legislação federal, o enquadramento é feito pelo órgão ambiental de cada estado da federação (no caso do RS, a FEPAM), após ouvida a sociedade. O que a Lei 10.350/94 fez, isso sim, foi dar ao Comitê de Bacia um papel importante, como mobilizador da sociedade, no sentido de dar mais peso a essa audiência que a FEPAM deve promover, antes de dar a palavra final.

A LEI 10.350/94 E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Como é bem sabido, o conceito de desenvolvimento sustentável, embora antecedido por nobres precursores (como, por exemplo, a noção de ecodesenvolvimento) , foi efetivamente "lançado" em 1987 na obra Nosso Futuro Comum, elaborada pela Comissão Mundial para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (da ONU), e mais conhecida pelo nome de Relatório Bruntland. De lá para cá, o conceito de desenvolvimento sustentável tem se constituído num pano de fundo constante nas discussões sobre o tema desenvolvimento x meio ambiente, a ponto de, de tão batido, ter se desgastado sobremaneira. (Coisa que, aliás, tem acontecido com tantos outros termos importantes, tais como democracia, participação, transparência, cidadania, sociedade civil, tecnologia, etc.).

Na definição do mencionado Relatório Bruntland, "o desenvolvimento sustentável responde às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazer as suas". Ressalte-se que este enunciado compacto vai se constituir no núcleo central de todas as discussões posteriores do conceito, apontando, desde logo, para questões cruciais, tais como a dos direitos de gerações futuras (a chamada equidade intergeracional), a necessária visão de longo prazo e a questão de tomadas de decisão presentes que levem em conta a enormidade de incertezas quanto ao futuro, com a conseqüente necessidade de um comportamento cheio de precauções. Nesse sentido, a tragédia do Mar de Aral, na antiga URSS, pela qual o maior mar de água doce do planeta foi praticamente extinto por uma programa míope de desenvolvimento agrícola com irrigação predatória, constitui-se num exemplo paradigmático do que não é um desenvolvimento sustentável.

Em 1989, em publicação do Banco Mundial, J. PEZZEY (citado por FAUCHEUX & NOËL, em recente obra de Economia dos Recursos Naturais e do Meio Ambiente) já arrolava mais de 20 significações para o conceito de desenvolvimento sustentável. Para nossos fins, entretanto, não há nenhuma necessidade de nos embrenharmos por esse emaranhado de versões e acepções. Limitar-nos-emos ao exame de duas grandes vertentes, derivadas da Economia Ambiental e dos Recursos Naturais e da Economia Ecológica, e que, após devidamente cotejadas, permitir-nos-ão tentar uma resposta à pergunta-título deste artigo.

A primeira vertente é a que tem sido denominada de "sustentabilidade fraca". Esta abordagem, inerente à Economia dos Recursos Naturais e do Meio Ambiente, deriva diretamente da teoria neoclássica do capital e do crescimento ótimo, enquanto aplicada aos bens e serviços naturais. Os dois pilares básicos são: 1) a concepção hicksiana (do Prêmio Nobel de Economia, Sir John Hicks) do rendimento – segundo a qual a renda real de uma pessoa é o fluxo de bens e serviços que ela pode consumir a cada período, desde que, ao fim de cada um deles, ela mantenha a capacidade de gerar um fluxo não menor no período seguinte – extrapolada para o conjunto das pessoas e para várias gerações; 2) a perspectiva de que os bens naturais são uma forma de capital que, incorporada a uma função de produção agregada, permite uma substituição perfeita entre eles e outros bens naturais ou bens de capital produzidos. Por esta abordagem, o que importa á a manutenção, a longo prazo, do consumo real per capita. Implícita em toda a abordagem está uma perspectiva otimista de que a contínua inovação tecnológica poderá substituir os bens naturais – tanto os exauríveis, quanto os renováveis que vierem a ser extintos – por outros bens naturais ou por bens de capital produzidos pelo próprio Homem. Assim, quando, por exemplo, o petróleo acabar, alguma outra forma de energia estará disponível (energia solar? fusão nuclear?); quando, por outro lado, uma floresta é extinta, algum outro tipo de capital natural ou artificial pode ocupar o seu lugar, de modo a não comprometer o fluxo de renda da presente geração e das vindouras. Como se depreende do exposto, este otimismo extrapola, para o futuro, o êxito da chamada Revolução Industrial dos dois últimos séculos, hoje alastrada planetariamente, em afugentar – via inovação tecnológica contínua – o fantasma malthusiano.

A segunda vertente, por simetria, pode ser denominada de "sustentabilidade forte". Esta abordagem é inerente à Economia Ecológica, uma tentativa multidisciplinar de enfrenatr as questões do desenvolvimento x meio ambiente, surgida na década de 90, com base nos estudos pioneiros de K.E. BOULDING e N. GEORGESCU-ROEGEN. Aqui, também, temos dois pilares a considerar: 1) as evidências existentes de mudanças climáticas (efeito estufa), do comprometimento da camada de ozônio, da acelerada perda de biodiversidade, da degradação de grandes porções de terras e a apropriação humana dos produtos da fotossíntese atingindo quase 50%, constituem fortes indícios de que estamos chegando a um potencial ponto de inflexão no processo de desenvolvimento; 2) o futuro é inerentemente incerto (no sentido de FRANK KNIGHT, de uma inexistência de distribuições de probabilidade conhecidas, o que impossibilita até mesmo uma análise de risco, bem como no sentido de K. R. POPPER, na sua crítica ao historicismo). Estes dois conceitos apontam para a conveniência – e, até, a necessidade – de se adotar explicitamente o princípio da precaução, pelo qual as questões do esgotamento dos recursos naturais exauríveis e da extinção de recursos naturais renováveis passa a ser vista com muito menos otimismo do que na abordagem anterior, com uma negação explícita da tese de uma substituibilidade perfeita.

Uma vez expostas estas duas abordagens básicas sobre a sustentabilidade, podemos passar ao exame da questão: o sistema de gestão dos recursos hídricos estabelecido pela Lei das Águas do RS enquadra-se em algum destes enfoques de sustentabilidade?

Recorde-se que, à semelhança do sistema francês, o sistema proposto para o RS tem as seguintes cinco características:

  1. O Estado, constitucionalmente, é proprietário dos recursos hídricos;
  2. O Estado, ouvida a sociedade, fixa metas de qualidade dos corpos d'água, a serem atingidas a longo prazo, corporificando usos desejados desses corpos d'água, exigindo a melhoria (ou, ao menos, a manutenção) da qualidade atual;
  3. O Estado delega aos Comitês de Bacia – verdadeiros parlamentos da água – o poder (e o dever) de planejar e executar as intervenções (estruturais e não estruturais) tendentes a alcançar, gradativamente, os níveis de qualidade estabelecidos; os Comitês decidem, também, via PUP, o preço da retirada de água e de despejo de efluentes, gerando assim os recursos financeiros para a viabilização das intervenções acordadas;
  4. O Estado coloca à disposição dos Comitês as Agências de Bacia, órgãos técnicos destinados a delinear as pautas de decisão dos Comitês, bem como cobrar e carrear o dinheiro arrecadado via PUP;
  5. O Estado tem o dever de monitorar permanentemente a qualidade e quantidade dos cursos d'água, bem como as emissões das fontes utilizadoras/poluidoras, no sentido de verificar (ou não) o alcance gradativo das metas estabelecidas, mantendo a sociedade informada sobre o processo.

Pelo exposto, deve ficar claro para o leitor que uma sistema destes, executado em

escala regional (de um estado da federação), é na verdade um sistema que aprende na medida em que, tendo um sub-sistema de monitoramento e de transparência pública, pode permanentemente cotejar resultados de ações com metas e, assim, eventualmente corrigir rumos. Com base nisso pode-se postular perfeitamente um legado, às gerações seguintes, de cursos d'agua que não estarão extintos nem serão cloacas, simples condutoras de dejetos. Neste sentido, há uma clara vinculação do disposto na Lei das Águas do RS com a perspectiva da sustentabilidade forte, a segunda vertente acima analisada.

Entretanto, deve também ficar claro que esta vinculação, embora clara, não é uma identidade. De fato, a vertente da substituibilidade forte (à semelhança da outra vertente) diz respeito aos bens naturais e ambientais na sua totalidade, i. é, ao meio ambiente como um todo. A Lei das Águas do RS, por outro lado, diz respeito à gestão apenas de um desses bens naturais: os corpos d'água. Assim sendo, ela não garante, per se, nenhuma sustentabilidade efetiva– forte ou fraca – se políticas paralelas e compatíveis não forem executadas no que tange aos demais corpos receptores e demais bens naturais.

Que concluir de tudo isto? À primeira vista, a conclusão configura-se bastante pessimista: é montado todo um sistema, de alta complexidade, que não pode assegurar, nem sequer em princípio, qualquer tipo de sustentabilidade a longo prazo. Entretanto, se nos debruçarmos sobre a experiência internacional em política ambiental, na qual nunca se encontra uma visão plenamente sistêmica, e, ao mesmo tempo, levarmos em conta o grande processo de aprendizado social que é deflagrado por um sistema de comitês de bacia, o nosso pessimismo pode transformar-se em otimismo moderado. O importante é não esmorecer no esforço de implantação do Sistema Estadual de Recursos Hídricos do RS.

Bibliografia