Câmara Técnica de Recursos Hídricos
O Gerenciamento dos Recursos Hídricos em uma Bacia Hidrográfica
Luiz Antonio Timm Grassi

1 – Que problemas pode apresentar um rio?
Genericamente, um corpo d’água, seja ele superficial (rio, arroio) ou subterrâneo (aqüífero ou lençol subterrâneo), pode apresentar dois tipos de problemas:
– quantitativos (escassez ou excesso de água)
– qualitativos (poluição)
Os dois tipos são associados, porque
– sempre que há poluição, há menos água de boa qualidade e
– sempre que diminui a quantidade de água de um rio, a tendência é piorar a qualidade.

2 – Como começam a ser percebidos os problemas de um rio?
Os problemas de um corpo d’água (superficial ou subterrâneo) são percebidos sempre em função dos usos do mesmo. Em outras palavras, enquanto um corpo d’água é utilizado sem efeitos negativos, ele não é problema ou não tem problemas.
Os problemas surgem quando o corpo d’água começa a não ter condições para enfrentar:
– a intensificação de um ou mais usos (exemplos: uma cidade cresce e necessita mais água do que o rio pode fornecer; as descargas de dejetos crescem e o rio começa a não ter mais condições de assimilá-los);
– o surgimento de novos usos (por exemplo, um rio que era usado apenas para lazer – banhos, pesca recreativa – e abastecimento público, começa a ser usado para irrigação em larga escala, e local de despejos de resíduos industriais ou da navegação);
– as intervenções que o aumento dos usos ou os novos usos provocam (por exemplo, a construção de barragem para geração de energia ou para irrigação, a retirada intensiva de água, o desmatamento das margens para implantar indústrias ou moradias).

3 – Os problemas de um rio são restritos às suas águas?
Não. Em primeiro lugar, porque um corpo d’água (superficial ou subterrâneo) nunca está isolado na natureza:
– como a água é um fluido (elemento móvel, capaz de mudar de estado físico e de conter ou diluir outras substâncias ou corpos), cada corpo d’água é a forma provisória que é assumida por uma parte da água existente na Terra, ou seja, um rio, um lençol subterrâneo ou uma nuvem são partes do ciclo hidrológico em constante mutação;
– no caso particular de um rio (corpo d’água superficial), tudo o que aconteceu com as águas que o formam interfere nas suas características, estejam essas águas
- na atmosfera (chuva);
- no solo (nascentes, torrentes, afluentes);
- no subsolo (águas subterrâneas).
Por esse motivo, a unidade geográfica das águas na natureza é a bacia hidrográfica (espaço limitado pelas partes mais altas do terreno, o divisor de águas, dentro do qual toda a água escorre em direção a um mesmo corpo d’água);
– a água, assim como o ar, é essencial para a vida, e um corpo d’água (assim como a atmosfera) é o habitat de muitas formas de vida; essa relação ecológica faz com que a água não possa ser vista apenas como uma substância química e um corpo d’água somente como um componente físico da natureza.
Em segundo lugar, porque as atividades humanas que geram os problemas de um rio podem se desenvolver em espaços distantes de seu leito. Exemplificando:
· o barqueiro, o banhista, a casa na beira do rio e até mesmo o agricultor e a pequena indústria nas margens podem não estar gerando problemas, enquanto
· o consumo de energia e de produtos agrícolas ou industriais, longe do rio, podem ser as verdadeiras causas desses problemas, na medida em que:
– a geração de energia elétrica modifica o regime (e, indiretamente, a qualidade) de um rio,
– a produção agrícola e a produção industrial consomem água e provocam poluição.
Grande parte das atividades desenvolvidas em qualquer cidade de uma bacia hidrográfica afeta, de alguma forma, as condições das águas da mesma. Por isso, os problemas de um rio são relacionados a fatores econômicos, sociopolíticos e culturais. Portanto, tais problemas estão associados a fatores coletivos, desencadeados por agentes sociais (parte da sociedade) em função de interesses econômicos (produção, consumo, mercado), manifestados e exercidos dentro de padrões e valores culturais e regulados (ou não) por decisões políticas e normas legais.
Como observação final, é preciso ter presente que os problemas de um rio são gerados por uma rede bastante complexa de agentes e causas que não podem ser minimizadas ou simplificadas.

4 – Como enfrentar os problemas de um rio?
Os problemas são gerados coletivamente, portanto, devem ser enfrentados coletivamente.
Os problemas são gerados por partes da sociedade com interesses definidos, muitas vezes conflitantes uns com os outros. Portanto são problemas que devem ser equacionados sob a condução de um ente que represente todas as partes interessadas ou afetadas, que represente a sociedade como um todo, ou seja, o Estado (no sentido de Poder Público). Em outras palavras, os problemas de um rio (ou melhor, dos recursos hídricos de uma bacia hidrográfica) devem ser tratados como questões de interesse público (e não de interesse privado, de partes da sociedade). E as ações para resolver esses problemas devem, necessariamente, ter um caráter público, impositivo e eficaz, em nome do interesse maior do conjunto dos cidadãos (atuais e futuros).

5 – Como conseguir eficácia no enfrentamento dos problemas de um rio?
Como os problemas de um rio (ou dos recursos hídricos ou dos recursos naturais em geral, de uma bacia hidrográfica) são gerados pelos usos e pelas atividades humanas, as causas dos mesmos são as próprias necessidades (já existentes ou novas) da sociedade ou de partes da mesma. Não adianta, portanto:
– atacar apenas os efeitos (“limpar” o rio ou as margens, apenas dragá-lo);
– pretender simplesmente impedir alguns ou todos os usos (voltar ao passado sem cidades, indústrias ou agricultura);
– defender o cumprimento automático de todas as leis (existentes ou novas), pela ação coercitiva do estado (como se o Poder Público fosse onipotente ou mágico, independente da sociedade e como se o cumprimento das leis não implicasse dificuldades técnicas, financeiras, etc.);
– mobilizar a opinião pública ou grupos da comunidade sem criar ou acionar os recursos e os instrumentos que intervenham nas causas dos problemas (querer “salvar” o rio por um “ato de vontade”);
– desencadear o processo inicial de recuperação (despoluição, recuperação do leito, etc.) como se, uma vez atingidos seus objetivos, nada mais precisasse ser feito nem houvesse novos riscos (ilusão do “rio despoluído”).
A experiência mundial, particularmente a da França (reconhecida nos demais países), indica que os problemas de um rio só podem ser enfrentados eficazmente:
– sob a autoridade do Estado, mas integrando, nas tomadas de decisões e nas ações os setores, usuários e as comunidades da bacia hidrográfica;
– considerando esses problemas sob a ótica de um gerenciamento dos recursos hídricos permanente, que abranja o diagnóstico da situação (o que a natureza oferece, o que os usuários e a comunidade precisam, os efeitos desses usos), a tomada de decisão sobre metas (objetivos de qualidade e de quantidade, prioridades de usos), recursos (humanos, técnicos e financeiros – quais, quantos, em quanto tempo, como devem ser obtidos, quem entra com o quê e com quanto) bem como criação e acionamento de instrumentos legais e institucionais para executar ações contínuas e permanentes.
Em resumo, o gerenciamento dos recursos hídricos pressupõe a existência de um sistema institucional (Sistema Estadual de Recursos Hídricos) que atue com base em um planejamento participativo periodicamente renovado (Planos de Bacia, Plano Estadual de Recursos Hídricos), que tenha força de lei.

6 – Quais os instrumentos mais importantes no gerenciamento dos recursos hídricos?
Os dois instrumentos mais importantes são a outorga e a cobrança.
– A outorga do uso da água – o Estado (Poder Público) exerce seu direito como proprietário das águas (Constituição Federal, Artigos 20. III e 26. I), autorizando o uso das mesmas para certas finalidades, sob determinadas condições (de quantidade e de qualidade). No sistema de gestão compartilhada, a orientação geral para a outorga e seus critérios devem ser fixadas no processo de planejamento participado. Os usos e suas condições devem ser discutidos por representantes dos órgãos públicos, dos setores de usuários e das comunidades da bacia, no Comitê de Bacia, tendo como referência o diagnóstico da realidade, resultando daí indicações fortes ou até impositivas para os órgãos que devem formalizar a outorga e fiscalizar os usos e seus efeitos.
– A cobrança pelo uso dos recursos hídricos – os problemas de escassez, poluição, deterioração ambiental, etc., provocados pelos usos dos recursos hídricos, apresentam sempre uma dimensão econômica. Não podendo ser usados indiscriminada e indefinidamente por todos e em qualquer circunstância, os recursos hídricos enquadram-se, queira-se ou não, na categoria de bens econômicos (não são bens livres, ilimitados, à disposição de todos). Cabe à sociedade decidir como seu valor econômico vai ser definido, quantificado, atribuído e distribuído entre os usuários. Por diversos motivos, dos quais um dos mais importantes é o fato de os recursos hídricos serem bens públicos, os mecanismos de mercado não são apropriados para estabelecer os preços correspondentes a cada uso da água ou do rio. A forma proposta para definir os valores a serem cobrados, inspirada no modelo francês (e análogo ao que se faz em um condomínio para decidir a quota condominial) é a seguinte:
a) No processo de planejamento da bacia, feito o diagnóstico, com auxílio de organismos técnicos (por exemplo, uma Agência de Bacia), discutem-se, no Comitê de Bacia, os objetivos de qualidade e quantidade, por trechos de cursos d’água, a serem atingidos em determinado prazo, em função de usos propostos. Esboçam-se alternativas que combinam diferentes objetivos e usos, entre os mais desejados e/ou necessários. A cada alternativa corresponde um conjunto de ações, intervenções ou obras, com o respectivo custo. Evidentemente, quanto mais ambiciosos os resultados, em aproveitamento dos recursos hídricos com melhoria ambiental, tanto maiores serão os custos da alternativa.
b) O Comitê decide a alternativa, ficando definido quanto cada setor usuário deve pagar (pela retirada da água, pelos lançamentos de despejos e até por outros usos, como navegação, geração de energia, etc.).
c) A efetivação da cobrança deve ser feita por um organismo técnico público (Agência de Bacia) e o montante arrecadado constituirá um fundo que permita o investimento direto em obras ou ações públicas prioritárias, ou o financiamento de outras obras ou ações públicas ou privadas importantes para a bacia, tudo de acordo com o Plano de Bacia.
d) As quotas ou tarifas definidas pelo Comitê de Bacia deverão ter reconhecimento e força legal, sendo obrigatório seu pagamento pelos setores usuários.
Deve-se notar que dificilmente os setores usuários poderão arcar com todos os custos de uma alternativa, mesmo que seja aquela de resultados mínimos indispensáveis em dadas circunstâncias de deterioração ambiental ou de conflito de usos. Pode ser necessário recorrer a outras fontes de dinheiro (a fundo perdido ou financiado). Como em um condomínio, uma reforma total do edifício pode exigir empréstimo externo a ser pago pelos condôminos a longo prazo ou então um ritmo mais lento nas obras.
É importante frisar que os valores das quotas (tarifas) devem ser tais que desencoragem o desperdício e a irresponsabilidade e que incentivem as iniciativas próprias para a redução da poluição e do consumo de água no próprio processo produtivo.

7 – O que é necessário para que o gerenciamento de uma bacia hidrográfica alcance resultados efetivos?
É indispensável que
– haja compreensão nítida da proposta, um mínimo de consenso e participação ativa de todas as partes, cada qual de acordo com seu papel;
– o sistema seja legalizado (aprovado em Lei) e implantado (criadas todas as instituições necessárias, com os recursos e as atribuições legais correspondentes).

Dezembro de 1993

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